Sargento Getúlio e o Romance Moderno: Reflexões...

SARGENTO GETÚLIO E O ROMANCE MODERNO: REFLEXÕES SOBRE OS ASPECTOS DE REPRESENTAÇÃO DA REALIDADE

Marcela Verônica da Silva1

Resumo: O presente trabalho tem por objetivo a análise literária da obra Sargento Getúlio de João Ubaldo Ribeiro a partir das resoluções estéticas que permitem defini-lo como Romance Moderno e dos recursos utilizados para a representação da realidade em tal obra. Dessa forma, propõe-se verificar como o personagem central mostra sua individualidade, mascarada pela relação de favor e dominação imposta pela hierarquia empregador/empregado.

Palavras-chave: Sargento Getúlio; Romance Moderno; Representação da Realidade.

Abstract: The present work takes the literary analysis of the work Sergeant Getúlio of João Ubaldo Ribeiro from the aesthetic resolutions that they allow it to define like Modern Novel and of the resources used for the representation of fact in such a work. In this form, propose to check like the central character masked by the relation of favor and domination imposed by the hierarchy employer / employee.

Keywords: Sargento Getúlio; Modern Novel; Representation.

 

1. Introdução

O estudo de um texto como o romance caracteriza-se sempre por dificuldades particulares, pois ao contrário do gênero épico que é acabado, não só como evento real de um passado longínquo, mas também em seu sentido e valor, o romance trata-se de um gênero ainda não acabado e que evolui diante da história. Em seu Epos e Romance, Mikhail Bakhtin (1988) afirma que ele antecipou e ainda antecipa a evolução da literatura, e, tornando-se o senhor ele renova todos os outros gêneros, ele os contaminou e os contamina por sua evolução e pelo seu inacabamento.

Afirma ainda que o romance esta em permanente processo de adaptação e amplia continuamente o domínio de sua matéria ficcional, interessando-se por outros domínios, no caso a psicologia e os conflitos políticos e sociais, de modo a aceitar em sua estrutura, novas técnicas narrativas e estilísticas com a finalidade de alcançar com maior eficácia a representação do mundo exterior.

Com base nestas considerações, é interessante afirmar que a obra de João Ubaldo Ribeiro é produzida dentro de um determinado momento sócio-cultural brasileiro, especificamente nordestino, mostrando em sua estrutura, alguns artifícios poéticos que evidenciam esse contexto, característica que também entra em sintonia com os modos de representação da realidade. Assim, cabe ressaltar que a obra é publicada em 1971, período marcado por conflitos políticos. Todavia, se há a proposta de enquadrar Sargento Getúlio como pertencente ao gênero romanesco, deve-se também considerar as mudanças processadas em seu meio de produção e recepção.

Especialmente após o século XIX, o romance moderno assiste a um profundo processo de racionalização do saber vinculado a um desenvolvimento científico e tecnológico. Todas estas alterações foram causa de transformações sociais, econômicas e demográficas.

A modernização, contudo, foi um fator marcante para a nova formação desse homem moderno, pois ele foi individualizando-se cada vez mais e fragmentando-se, ou seja, o progresso, apesar de contribuir na melhoria das condições materiais de existência, também contribuiu para a perda de identidade e para o sentimento de “vazio”, elemento este que tem motivado a formulação de uma nova visão de mundo, pautada na angústia e na solidão humana.

A arte evolui de acordo com a sociedade, desta forma, uma nova organização social pede novos métodos de apreensão do real, pois as técnicas tradicionais de relato tornam-se gradualmente incapazes de incorporar todas as contribuições surgidas no contexto mundial.

Desta forma, neste trabalho pretende-se realizar uma análise da obra Ubaldiana, mais especificamente Sargento Getúlio tecendo uma reflexão acerca da produção romanesca. Neste sentido, sobretudo, é necessário discorrer a respeito das resoluções estéticas que conferem a possibilidade de defini-lo como romance moderno, bem como, visar ainda, quais os recursos poéticos que concorrem para a representação da realidade nesta obra.

Sargento Getúlio, de 1971 é o segundo romance de João Ubaldo Ribeiro. A obra evidencia uma retomada à tradição regionalista que é percebida pelo uso de uma linguagem muito particular das regiões nordestinas e pelo enredo que trata do abuso de poder e da crise de identidade de um homem que é “produto” de um meio opressor e hierárquico. A opressão e hierarquia podem ser notadas no uso da linguagem do protagonista e na forma com que as ações por ele narradas sucedem-se, ações estas que denunciam toda a truculência e o machismo de um personagem criado em meio a tal realidade.

Considerando, pois, a hipótese de Sargento Getúlio configurar-se como um novo perfil de romance, é que se propõe, no próximo tópico, a investigar de modo mais detalhado as resoluções técnicas e estéticas presentes na composição da obra que a aproxima desta nova tendência do gênero romanesco.

 

2. O Romance Moderno e a Representação da Realidade em Sargento Getúlio

Antes de iniciar a análise dos aspectos estruturais da narrativa, é necessário tecer algumas considerações acerca do enredo de Sargento Getúlio. Trata-se de uma narrativa formada por um longo monólogo interior e “interdiálogos”. Contudo, nenhum interlocutor se expressa com sua própria voz, pois é o próprio Getúlio que dá voz aos outros personagens.

Pode-se classificar a linguagem utilizada como uma variante "sertaneja" mesclada com vocábulos cultos, adulterados pela criatividade do personagem que utiliza palavras truncadas, gírias e neologismos. Essa linguagem em alguns momentos lembra a utilizada em algumas obras de João Guimarães Rosa, escritor que, além de pautar-se na construção de uma fala regionalista, ainda constrói vocábulos próprios.

Um dia desses com essa macriação algum macho lhe tira-lhe o fato fora, que tu só vai ter tempo de espiar as tripas, rezar meia salverrainha, um quarto de atodecontição e escolher o melhor lugar no barro pra se ajeitar, e ligeiro ligeiro, que possa ser que antes de chegar já tenha ido. (RIBEIRO, 1982, p. 11).

Assim, percebe-se no caso dos vocábulos “macriação”, “salverrainha” e “atodecontição” presentes no excerto acima, truncamentos que, além de funcionarem como marcas próprias da fala do personagem Getúlio, também desempenham, no caso da ultima palavra, uma utilização indevida do que seria "ato de contrição".

Seguindo com a síntese do enredo, cabe dizer que o personagem Acrísio Antunes chefe do sargento e pertencente à frente política do PSD em Aracajú, confia a seu empregado “trabalhos”, ou seja, mortes. Quando pensa em aposentar-se, Getúlio recebe como última incumbência um tipo de trabalho que não gostava de fazer, porém obedece sem questionar: prender um adversário político do interior de Sergipe (considerado udenista-comunista) e levá-lo para Aracaju: Não gosto desse serviço, não gosto de levar preso. Avexame. Depois de levar vosmecê lá, assento os quartos num lugar e largo essa vida de cigano. Só se doutor Zé Antunes pedir muito. Mesmo assim. Me aposento-me. (RIBEIRO, 1982, p. 13).

Durante vários momentos da narrativa, Getúlio expõe seu desejo de aposentar-se, como se a vida que levava o incomodasse, porém a fidelidade ao patrão mostra-se mais forte, tanto é que ele oscila entre seu desejo e o fato de continuar a trabalhar se seu patrão pedir.

O personagem narra, então, durante esta viagem alguns acontecimentos de sua vida, fatos, muitas vezes, sanguinários que são contados com certa naturalidade, deixando em evidência seu caráter truculento e machista, alternado com momentos de humanidade. Através dos longos fluxos de consciência e sob aparente desordem temporal, depreende-se do texto que Getúlio nasceu no sertão do Sergipe e viveu uma realidade de extrema miséria:

Mas se eu não sou um homem despachado ainda estava lá no sertão sem nome, mastigando semente de mucunã, magro como o filho do cão, dois trastes como possuídos, uma ruma de filhos, um tico de comida por semana e um cavalo mofino para buscar as tresmalhadas de qualquer dono. (id.ib., p. 14).

O narrador se coloca em uma posição distanciada em relação à realidade miserável quando este atribui a si mesmo a qualidade de “despachado”. A visão da miséria é retratada por imagens que representam a fome, por exemplo, “tico de comida” e “semente de mucunã”. São dados da realidade que concluem, de forma sociológica, a realidade miserável enfrentada pelo personagem.

Quando foi para a cidade trabalhou como engraxate no interior, assassinou sua esposa que estava grávida porque esta o traía e, procurando proteção de Acrísio Antunes, ingressou na Polícia Militar no posto de Sargento.

Getúlio avança com o prisioneiro do sertão para o litoral. Percorrem o caminho em um “hudso”, dirigido por Amaro, companheiro do sargento. Durante a narrativa percebe-se que Getúlio como capanga apenas obedece às ordens sem questionar nada e sua fidelidade é extrema até no momento em que ocorre uma mudança na política e Acrísio Antunes manda avisar Getúlio para que solte o prisioneiro e fuja:

Sempre quem pode sumir é os outros, a gente nunca. Na-bem, depois não sei quantos homens tem em Aracajú que possa me parar assim. Depois o chefe me mandou buscar isso aí e eu fui, peguei, truxe, amansei, e vou levar porque mesmo que o chefe agora não possa me sustentar, eu levei o homem, chego lá entrego. É preciso entregar o bicho. Entrego e digo: ordem cumprida. Depois o resto se agüenta-se como for, mas a entrega já foi feita, não sou homem de parar no meio. Se for assim mesmo como se diz que é, espero as outras ordens, porque esta está dada e nem ele que viesse aqui e me pedisse para não levar eu não deixava de não levar, porque possa ser que ele esteja somente querendo me livrar de encrenca e eu não tenho medo de encrenca, eu levo esse lixo de qualquer jeito, chego lá e entrego. (id.ib, p. 84).

Incapaz de compreender tais mudanças e não aceitando que outra pessoa falasse pelo patrão, Getúlio resolve por si mesmo - sua primeira decisão individual - cumprir sua missão a qualquer preço. Assim, a partir da autonomia conquistada, e colocando à frente sua valentia e coragem, ao chegar ao destino enfrenta até a morte os soldados que ali estavam à sua espera, atitude esta que dialoga com a luta, parte do livro Os Sertões (1984) descrita por Euclides da Cunha que conta a história da batalha entre os sertanejos da região de Canudos e os soldados do governo.

Além de estabelecer diálogo com as obras de Guimarães Rosa e Euclides da Cunha, o romance insere em sua construção diversos tipos de linguagem ou gêneros intercalados tornando-se plurilíngüe. O teórico Bakhtin afirma que qualquer gênero pode ser introduzido na estrutura do romance e, de fato, é muito difícil encontrar um gênero que não tenha sido alguma vez incluído num romance por algum autor. (BAKHTIN, 1988, p. 124). Os gêneros mais utilizados, no entanto, que participam muitas vezes de sua estruturação a ponto de determinar seu perfil composicional são a confissão, as cartas, o diário, a biografia, os relatos de viagem etc. Todos esses gêneros que entram para o romance introduzem nele suas linguagens e, portanto, estratificam sua unidade lingüística e aprofundam de um novo modo seu plurilingüismo. (id., ib., p. 125).

Sargento Getúlio, por sua filiação ao gênero romanesco, traz em sua composição uma variedade desses gêneros intercalados. Entre os mais comuns estão as poesias improvisadas que Tárcio, companheiro citado por Getúlio, compõe: Tárcio tirava verso quando queria, ou então decorava. (RIBEIRO, 1982, p. 35). Em seguida o poema é inserido na narrativa:

rezado amigo Getúlio
Permita eu lhe contar
Um caso que se passou
Na vila de Propriá
Teve tanta mortandade
Que até o cão teve lá.

As mulheres virou homem
E os homens virou mulher
E até os bichos do mato
Quando viram deu no pé
Pra o compadre acreditar
Vai ser preciso ter fé...
(id., ib., p, 35).

Neste fragmento o poema escrito por Tárcio pode ser associado ao chamado "repente". É uma poesia de improviso que utiliza histórias populares. Assim, no verso "na vila do Propriá" já nota-se certa restrição ao espaço sertanejo e no caso da passagem "as mulheres virou homem/ os homens virou mulher" tem-se uma lenda popular e a própria linguagem utilizada remete ao coloquialismo presente neste gênero de poesia.

Há também dentro da obra alguns aspectos narrativos que Getúlio recria a partir da tradição popular, assim, a título de exemplo pode-se citar: Se tivesse cangaço, eu ia para o cangaço, com um chapéu de estrelas prateadas e ia me chamar Dragão Manjaléu e ia falar pouco e fazer muito. (id., ib., p. 122). Neste fragmento encontram-se alguns elementos poéticos recorrentes na poesia popular, entre eles, a figura heróica do cangaceiro caracterizado pela valentia em "falar pouco e fazer muito" e pela suntuosidade de suas vestes em "chapéu de estrelas prateadas". Ainda neste excerto, cabe observar a presença do dragão como sendo um ícone do romance de aventura. Trazido para o sertão, esse personagem comprova a presença da tradição ibérica no discurso de Getúlio.

A influencia dos romances populares também pode ser vista na seguinte passagem: Estou melhor que os reis da Hungria, aqui todo de preto, hum, bem que podia ter um cavalo desses que os cascos parece de cortiça [...] desses é que podia ser, e eu melhor e mais bonito e mais valente do que os reis da Hungria, esperando o combate. (id., ib., p. 116), na qual observa-se elementos da cultura medieval, constantes no imaginário nordestino, servindo de parâmetro para o que Getúlio considera como modelo de imponência.

Percebe-se que o personagem tem uma forte criatividade, também alicerçada na cultura do espaço em que habita. Assim, até em suas fantasias – no caso, em seus pensamentos sobre ter filhos com a amante Luzinete - Getúlio mostra o conceito paternalista e machista, arraigado em sua vivência e em sua formação:

Não ia nascer mulher, só ia nascer um bando de macho e eu botava uns nomes de macho e nós mandando [...]. Um belo dia, Vencecavalo disse aos homens da tropa: peço passagem, porque sou mais homem e sua tropa pode muito bem esperar que eu passe, bem descansado, bem devagar e assobiando, ainda mais que eu sou o Reis de Sergipe da Coroa. (id., ib., p. 124).

Mais uma vez a narrativa é associada ao romance de aventura. Getúlio atribui ao seu filho imaginário, o "Vencecavalo" características próprias de um nobre corajoso e respeitado. Seu poder permite-lhe deter uma tropa inteira para que possa passar, esta imagem é muito recorrente nos romances de cavalaria.

Além desses gêneros, outros compõem a obra, entre eles os relatos de viagem que no caso compõe a narrativa toda, pois é durante a viagem que Getúlio relembra suas histórias e as cantigas populares: Eu moro no mundo. Moro andando. Ai, aaaaaaaai, aai, aai, ai, ai, aaaaaaaaai, aaaai, ai um boi de barro, ai um boi de barro. (id., ib., p. 29), em que o “boi de barro” serve de símbolo da infância de Getúlio e aparece em muitas partes da narrativa funcionando como a presença dos traços da cultura nordestina na vida de Getúlio.

Todos esses gêneros mesclados à narrativa principal, segundo Bakhtin, são colocados no romance como formas elaboradas de assimilação da realidade. (BAKHTIN, 1988, p. 124).

A obra Sargento Getúlio encerra em sua estrutura narrativa elementos que demonstram a sua transgressão às modalidades literárias tradicionais. Desta forma, a utilização de uma teoria que sustente os diversos mecanismos utilizados pelo escritor se faz necessária.

Em Reflexões sobre o Romance Moderno (1969), Anatol Rosenfeld procura mostrar alguns recursos utilizados nas obras artísticas do século XX (artes plásticas e textos literários) que demonstrem uma ruptura em relação às formas determinadas por um passado clássico.

Uma das hipóteses a que chega corresponde à suposição da existência de um Zeitgeist, espírito unificador que se comunica a todas as manifestações de culturas em contato, naturalmente com variações nacionais. (ROSENFELD, 1969, p. 73).

A opressão e a miséria são marcas conhecidas de uma sociedade capitalista e desigual. No Brasil, mais especificamente nas regiões mais pobres, como no sertão nordestino, muitas foram as tentativas, em obras tidas como “regionalistas”, de representar esse local e o sofrimento que o meio causa nos sertanejos. Sargento Getúlio é uma obra interessante na medida em que não se compromete objetivamente com a caracterização de um regionalismo, mas oferece suporte para o entendimento da realidade deste local através dos pensamentos que o personagem vai revelando no decorrer da narrativa. Desta forma, os indícios são colocados esparsamente e cabe ao leitor perceber e a partir deles conhecer o protagonista. A obra parece pertencer ao regionalismo, visto ser seu enredo ambientado no mesmo local, porém, o foco nesta região dá-se de forma a captar os sofrimentos e as dificuldades presentes no interior do indivíduo, e, esta preocupação formal é uma característica nova na representação da realidade, que condiz com a nova concepção de mundo que a arte recria. Nota-se, portanto, que o contexto histórico a que a narrativa procura estabelecer relação é o das lutas partidárias do início do século XX, mais especificamente no Sergipe, em uma época onde a polícia e a política eram colocadas em um “mesmo grupo”.

A segunda hipótese determinante da mudança das obras literárias (ou artes plásticas) descrita por Rosenfeld seria o fenômeno da desrealização, ou seja, já não existe mais crença no realismo e por isso há uma negação da imitação. A arte como “retrato” desaparece, ela passa a não manter mais o pacto com a coesão, deixando de lado a perspectiva e rompendo com a linearidade e a cronologia. Esta mudança opera-se em decorrência de um aprofundamento na subjetividade e na verdade não mais do narrador, no caso da matéria romanesca, mas do personagem visto em sua inconsciência, que é colocado diante do leitor sem a presença do intermediário. Assim, no romance em questão existe apenas uma citação, na página de rosto do livro, de um “autor suposto” exterior à trama, que procura brevemente organizar e contextualizar o leitor na história através das seguintes palavras: Nesta história, o Sargento Getúlio leva um preso de Paulo Afonso a Barra dos Coqueiros. É uma história de aretê. (RIBEIRO, 1971, p. 07).

Nesta breve citação, não há por parte deste “autor suposto” nenhuma tentativa de explicar melhor sua definição da narrativa como sendo uma história de "aretê". Essa também é uma característica marcante no romance na medida em que não há uma preocupação do narrador em oferecer ao leitor uma história detalhada, explicada, se preocupa antes em fazê-lo pensar e investigar.

A utilização de algumas epígrafes misteriosas que ajuda no esclarecimento da narrativa é uma característica da obra ubaldiana. Esse vocábulo – aretê – tem origem grega e quer dizer virtude, no sentido da moral e da educação cívica. A virtù ou o aretê de Getúlio, daí seu amoralismo, é uma forma de dever, que está além das contingências da realidade social e política, mutável diante de seus olhos. (COUTINHO, 1998, p. 74).

Esta criação do “autor suposto” faz ainda com que o romance tenha uma maior aceitação por parte do leitor que desvenda o que se passa na mente da personagem por si mesmo. É o próprio personagem que narra sua história sem a mediação de um narrador externo. Essa característica também evidencia uma característica nova no romance: o fato do narrador não ser mais confiável. As certezas, em relação ao romance, não existem mais, ele é e quer ser encarado como ficção sem perder a intenção de representar a realidade, agora não mais exterior, mas do interior do indivíduo.

É válido ressaltar que o único personagem que possui voz dentro da narrativa é Getúlio. A partir de seus relatos e pensamentos é que se pode entrar em contato com seu universo, sua personalidade e suas motivações. Sua fala ganha diferentes ritmos de acordo com os assuntos e as situações da viagem. Na primeira parte da viagem, por exemplo, Getúlio prosa o tempo todo, para não dormir (id., ib., p. 26), ziguezagueando de um assunto a outro, o que demonstra certo incômodo e agitação:

Ô Amaro, porventura onde estamos? Me avise-me quando chegar em Curituba Velha, arreceio tocaias. Pior da quentura, os bichinhos de asa vão entrando pela janela e vão se grudando no suor da cara. (...) Em Buquim, aquela mosquitaria, que era ver. Buquim é Brasil? Porto da Folha é Brasil, com aqueles alemãos falando arrastado? Aracaju não é Brasil. Baiano fala cantando. Necessário tomar banho uma hora dessas. Quentura do crânio rodete. E esses bichos batendo na cara dum cristão. Me aposento-me. (id., ib. p. 14- 15).

O incômodo pode ser percebido, por exemplo, pelas sensações de “quentura”, “bichinhos [...] grudando no suor da cara”, “mosquitaria” etc. Além dos vocábulos negativos, as frases curtas, as interrogações seguidas, a mudança de assunto de uma oração à outra, levam o leitor a imaginar a cena e a compartilhar da agitação de Getúlio.

Outras vezes, nota-se um ritmo mais distendido típico das recordações ou um tom mais solto e fragmentado acompanhando suas fantasias: Antigamente, tinha umas mágicas, acho. (id., ib., p. 122), assim, o vocábulo “antigamente” remete o leitor para outro plano da narrativa, e as interrupções, como no caso da palavra “acho” dão a sensação de uma pausa típica da criação, invenção.

Apenas em algumas passagens a palavra do “outro” aparece, porém confundem-se com a voz do protagonista: Aí eu digo a Amaro: tem razão, é um bicho branco danado, de cabeça assim ninguém dizia que era branco desse jeito. Aí ele sacode a cabeça e diz: é um bichinho tão branco que parece pintado, hein? (id., ib., p.52). O narrador utiliza, assim, o discurso indireto livre para citar através da voz de Getúlio, a fala de Amaro, trata-se de um recurso que conserva toda a afetividade e a expressividade do discurso direto e mantém as transposições de pronomes, verbos e advérbios típicos do discurso indireto. Assim, a riqueza do discurso indireto livre está no relacionamento, dentro do mesmo parágrafo, dos discursos direto e indireto, como ocorre quando Getúlio toma em seu discurso as palavras de Amaro. Getúlio, deste modo, detém a fala tornando sua narrativa monológica. A respeito deste caráter monológico da linguagem pode-se afirmar que:

O discurso de Getúlio se faz, assim, monológico no sentido de que a outra voz, a do adversário, pelo menos, é reduzida ao silêncio. Quando é reconhecida como tal, como uma alteridade – é isso que acontece quando a sua fala alcança a força necessária para ser pelo menos reproduzida em debreagem de segundo grau, isto é, quando citada – é passada como expressão de insensatez, de irracionalidade. Em outros termos, ela é reduzida, ao ser silenciada, à não-existência, ou é considerada anticultura, quando é citada ainda que para ser contestada. (MIYAZAKI, 1996, p. 24).

Como já foi dito, quando saiu do sertão, o personagem foi para a cidade de Aracajú onde trabalhou como engraxate até ingressar na Polícia Militar, ocupando o cargo de Sargento e filiando-se a um partido político, o PSD, que tinha na UDN um partido rival. Na prática, porém, a ocupação de Getúlio poderia ser confundida com a de “capanga”, uma vez que o subordinado deveria obedecer e compactuar com as atrocidades que o Coronel Acrísio Antunes ordenava que fossem realizadas.

Em alguns momentos da narrativa depreende-se do discurso do personagem uma “afirmação do não ser”, ou seja, em sua mentalidade há uma diferença entre os sertanejos (derrotados) e ele. Getúlio se considera um homem bem sucedido e deve isso a uma característica positiva de sua personalidade: o fato de ser "despachado", ou seja, uma pessoa desembaraçada, ativa, atrevida, valente. Em sua concepção, essa qualidade fez dele Sargento da Polícia Militar do estado do Sergipe e o homem em quem o chefe Acrísio Antunes confiava. No entanto, a ligação entre o personagem principal e seu chefe influencia na própria conduta de Getúlio, tirando-lhe o discernimento em relação ao que era certo ou não, pois obedecia cegamente aos desmandos de seu superior, tido como um verdadeiro exemplo.

Em certos momentos percebe-se, inclusive, que Getúlio adota um discurso permeado por palavras próprias de seu partido e/ ou de seu patrão, ocasionando, de certa forma, a perda de identidade do empregado que foi contaminado pela sua inserção no meio político:

Ô gente mofina só é comunista, embora estime a perturbação. Na hora que arrocha, se vão todos para cachaprego. Levei diversos. Luiz Carlos Preste. Luiz Carlos Preste. Faziam mítingue na praça Pinheiro Machado gritando isso e uma vez perturbaram toda a rua da Frente, não deixaram ninguém passar. Não teve gueguê nem gagá. Seu Getúlio, me compreenda uma coisa, me desça o pau nessa corja. (RIBEIRO, 1982, p. 18-19).

Neste excerto, por exemplo, a palavra “comunista”, bem como o nome "Luiz Carlos Prestes" só fazem parte do discurso de Getúlio pela sua inserção no meio político e pelo contato com seu chefe. A caracterização dada por Getulio para os comunistas quando os chama de “gente mofina”, também agrega os valores que o personagem recebeu do partido rival. Assim, sua visão é limitada e fundamentada na dicotomia “nós/eles”, onde “Nós” diz respeito a ele, ao chefe e ao partido e “Eles” significa udenista, comunista e todos aqueles que não fazem parte do PSD:

Campe-se, se eu for pensar, não vou entender mesmo, de maneiras que o mundo é assim: é o chefe e sou eu. Quer dizer, existe outras pessoas, mas não são pessoas para mim, porque estão fora. Não sei. Hum. Quer dizer, eu estou aqui. Sou eu. Para eu ser eu direito, tem que ser como o chefe, porque senão eu era outra coisa, mas eu sou eu e não posso ser outra coisa. (id., ib., p. 94).

Ele assume o partido e sua função como o centro de sua vida. A crueldade do mundo que Getúlio habita fica evidente em sua fala, marcada pelo tom brutal que usa ao descrever cenas de violência:

Em Buquim, fizemos uma tocaia amuntados. (...) Tonico levou a metralhadora anã e passou ela e não foi bom, que os miolos se desmilingüiram-se e saiu pedaço de queixada e foi lasca de homem por tudo que era lado (...). As ordens que vieram era: não encosta no corpo. Mas mal corpo havia, aquilo é uma espirrada que desparrama sangue por todo canto e não deixa nada inteiro. (id., ib., p. 24).

Ele chega a descrever detalhes dos atos brutais que executa entre eles a degola de um tenente que o ofendera. Para Getúlio, matar é algo comum, ele inclusive demonstra em diversos momentos gosto pela prática sanguinária. . Desta forma, sua vida vai sendo preenchida por essas atrocidades e ele constrói um modelo em que predomina esta indissociabilidade em relação ao seu chefe.

Durante a leitura da narrativa o leitor torna-se conhecedor da personalidade de Getúlio e percebe que por trás de sua postura existe certa debilidade psíquica que explica sua resistência às mudanças que se processam na política. Assim, interromper a sua missão, ordenada pelo chefe, afeta a solidez em que sua vida estava baseada, esta mudança causa insegurança e ele as vê como ameaçadoras de sua condição. Porém, quando o personagem resolve agir contra as ordens, percebe que tem de tomar decisões, e, sem saber como agir se deixa dominar pela violência e valentia, características positivas em sua concepção. A partir do momento da “escolha” é que o sargento rompe ligações com o chefe político, experimentando, deste modo, um conhecimento de si mesmo. A partir desta escolha Getúlio passa a repetir a frase: eu sou eu, e essa expressão adquire o sentido de aceitação de uma nova individualidade que se processa e que ele passa a descobrir.

Deste modo, vale ressaltar que, por viver em uma realidade tão violenta e machista, essa rebeldia acaba se sobressaindo na personalidade desse homem, que não encontra tempo para rever sua situação, uma vez que a morte vem tolhê-lo no momento em que se conscientiza da própria individualidade, mesmo assim, o personagem ainda se arrisca a construir uma história própria: não sou mais aquele que o senhor mandou para Paulo Afonso, eu era ele e agora eu sou eu. (id., ib., p.152).

Portanto, no final da narrativa, quando Getúlio profere suas ultimas palavras, percebe-se uma infelicidade e arrependimento no tom usado. Ele percebe que durante toda sua vida ele se dedicou à sua profissão e ao seu chefe, deixando de agir conforme suas vontades, desperdiçando seu tempo: tem tanta coisa que eu não pude fazer porque eu não sabia. (id., ib., p.156). Assim, percebe-se que a autoconsciência se revelou tardiamente, uma vez que o personagem não pode usá-la para modificar sua existência.

Voltando às concepções de Rosenfeld pode-se dizer que a necessidade de captação de uma realidade mais profunda e real do que o comum passa a ser uma necessidade e é absorvida pela literatura. A expressão disto pode ser observada no romance de consciência, pois, o homem não vive mais “no” tempo, ele passa a “ser” um tempo não cronológico, uma atualidade que engloba passado, presente e futuro.

Em Sargento Getúlio a narrativa se desenvolve de acordo com uma seqüência não cronológica própria das recordações e pensamentos do personagem. O personagem conta sua história de acordo com o que lhe vêm à mente, fazendo com que os fatos sejam um imenso monólogo interior, que, apesar de caótico, ainda é representado com certa coerência o que possibilita a leitura e a compreensão da obra:

Quina Petróleo Oriental, já usou? Se eu alisasse o cabelo, possa ser que melhorasse, mas para alisar tinha que ir num salão em Aracajú. Isso não, ia acabar fazendo uns buracos nuns camarados por lá, quando me olhasse resvalado. Aracajú é mais difícil que no interior, cidade grande tem testemunha por demasiado. A política não é bom em Aracajú. Política de macho é aqui. Diacho, até potó dá aqui dentro, já viu vosmecê? Um saqué desses verte água em sua cara e encalomba tudo, nunca mais sara. Amaro, nós dormimos no primeiro lugar aí, não agüento mais essa viagem. (id. ib. p. 16-17).

No excerto acima observa-se cerca de quatro assuntos diferentes: a dúvida entre alisar o cabelo ou não (que leva a personagem a relacionar “salão” a “Aracajú”), que já direciona para o fato do personagem tecer comentários sobre os habitantes e sobre a política do local, até ser interrompido pela presença de um “potó”, que muda a direção da conversa. Desta maneira, pode-se compreender melhor a “seqüência” utilizada para narrar os fatos, seqüência natural de diálogos, onde “um assunto puxa o outro”.

Além do monólogo interior, Rosenfeld destaca como fator marcante do romance moderno o fluxo de consciência:

A tentativa de reproduzir este fluxo de consciência – com sua fusão dos níveis temporais – leva à radicalização do monólogo interior. Desaparece ou se omite o intermediário, isto é, o narrador, que nos apresenta a personagem no distanciamento gramatical do pronome “ele” e da voz do imperfeito. A consciência da personagem passa a manifestar-se na sua atualidade imediata, em pleno ato presente, como um Eu que ocupa totalmente a tela imaginária do romance. Ao desaparecer o intermediário, substituído pela presença direta do fluxo psíquico, desaparece também a ordem lógica da oração e a coerência da estrutura que o narrador clássico imprimia à seqüência dos acontecimentos. (ROSENFELD, 1969, p. 81-82).

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Destarte, ao final da obra Sargento Getúlio, a necessidade de representação do que se passa no interior do indivíduo toma tal proporção que deixa à mostra todo o transtorno, a dimensão caótica dos pensamentos que povoam a mente do personagem. Neste momento todos os sentimentos são colocados à tona, bem como as imagens de fatos marcantes de sua infância, de seu amigo Amaro (que havia sido morto) e de Luzinete, sua amante também morta:

lá na lua está Luzinete e essa força se atira eu também atiro, ó minha lazarina, ô meu papo amarelo e um mandacaru de cabeça para cima eu vou morrer e nunca vou morrer Amaro eu nunca vou morrer um aboio e uma vida Amaro aaaaaaaaaaaaaaaahhh eeeeeeeeeeeeeeeeeh aê aê aê aê aê aê aê aê aê aê eco eco aê aê aê aê aê eu nunca vou morrer Amaro e Luzi netena lua essas balas é como meu dedo longe e o lhelá Ara eu vejocajú e a águacor redonde vagar e sal gadaela éboa nun cavoumor rernun caeusoueu, ai um boi de barro, aiumboi aiumboide barroaê aê aê aiumgara jauchei de barro e vidaeu sou eu e vou e quem foi ai mi nhalaran jeiramur chaai ei eu vou e cumpro e faço e (RIBEIRO, p. 156-157).

Como o discurso é pautado nos pensamentos do personagem, em um momento de alucinação - provavelmente à beira de sua morte - é comum que seus pensamentos tornem-se incongruentes, mas mesmo diante desta imensa desordem Getúlio resgata em sua mente fatos marcantes que dizem respeito à sua personalidade no caso da frase "se atira eu também atiro"; sentimentos e lembranças, inclusive de fatos antigos ou de sua infância que podem ser simbolizados pelo típico "boi de barro" etc. Essas imagens confundem-se e o cérebro não dá conta de fixar esse bombardeio de informações de forma linear e a essa tentativa de representação do caráter caótico das idéias é que se pode afirmar que a obra Sargento Getúlio pertence ao romance moderno, que quer tirar do homem a sua essência, o que há de mais subjetivo em um indivíduo.

 

3. Considerações finais

Procurou-se neste trabalho observar como o romance Sargento Getúlio, de João Ubaldo Ribeiro, internaliza em sua estrutura os procedimentos artísticos modernos de apreensão do universo exterior. Essa apreensão é descrita com base na constante modernização que ocorre nos aspectos sócio-culturais, orientando, desta maneira, a criação de novas formas romanescas para a captação de tal realidade.

Neste sentido, a análise foi organizada de forma a mostrar alguns aspectos formais do gênero romanesco, mais especificamente o moderno – no qual se utilizou a teoria proposta por Anatol Rosenfeld em seu ensaio Reflexões sobre o Romance Moderno - além de procurar estabelecer, de acordo com o romance em questão, as formas utilizadas para a representação da realidade.

Cabe explicitar ainda que o romance Sargento Getúlio possui extrema maleabilidade, pois condensa traços de outros gêneros textuais, principalmente os ligados à cultura popular nordestina, como é o caso das poesias improvisadas, das narrativas baseadas em aventuras e no “cangaceiro”, herói sertanejo. O plurilinguismo confere complexidade e singularidade à matéria narrada.

Em seguida, foi enfocado o modelo proposto por Rosenfeld para a análise do romance moderno, o que direcionou o trabalho para uma apresentação comparativa sobre a intenção da obra em relação ao regionalismo (não mais colocado objetivamente, mas subjetivamente através dos pensamentos de Getúlio, o que de certa forma se relaciona ao Zeitgeist); à presença do narrador ou “autor suposto” que faz com que a obra seja apresentada diretamente ao leitor ganhando assim maior interação entre este e o personagem; à linguagem do romance que é formada por fluxos de consciência e monólogos interiores que acabam por romper com a linearidade do tempo e conseqüentemente com uma “realidade” e à presença de traços simbólicos que permitem direcionar à obra e o personagem em um determinado local.

É, portanto, observando como se dá a manipulação destes elementos na organização discursiva da narrativa, que se compreende como João Ubaldo Ribeiro é capaz de imprimir ao seu romance um caráter moderno.