Memória, História e Ficção em VPB

MEMÓRIA, HISTÓRIA E FICÇÃO EM
VIVA O POVO BRASILEIRO DE JOÃO UBALDO RIBEIRO


 

Rita Olivieri-Godet
(Université de Paris 8)


 

« […] toda compreensão do mundo e da vida
só poderá ser ficcionante, histórica para o passado,
caótica para o presente, utópica para o futuro. »

(José Saramago, 1999)

No seu discurso durante a cerimônia de recebimento do título de Doutor Honoris Causa da Universidade de Évora, José Saramago expõe magistralmente o tema antigo e sempre polêmico das relações entre tempo, história e ficção1. Da minha leitura desse texto, retomo duas idéias básicas que desenvolverei ao longo deste ensaio. A primeira, citada na epígrafe, o que já denota a minha intenção de glosa, insiste no papel primordial da ficção como forma de conhecimento da realidade : « Com petulância de romancista, escrevi uma vez que a melhor maneira de explicar as coisas ainda é a metáfora, isto é dizer uma coisa por outra »2; a segunda diz respeito à historicidade de toda obra literária. Saramago discorda da denominação de « romance histórico » que a crítica atribui a alguns de seus romances, « em nome da evidência de que toda a ficção literária (e, em sentido mais lato, toda a obra de arte), não só é histórica, como não poderia deixar de o ser »3.

Tentarei discutir o problema a partir da leitura de uma obra específica, Viva o povo brasileiro de João Ubaldo Ribeiro, que problematiza as relações entre história, memória e ficção. Seria a ficção mais real do que o real, mais autêntica do que o discurso da história ? Colocar o problema dessa forma significaria partir do pressuposto da homogeneidade dos discursos literário e histórico, quando sabemos da multiplicidade de relatos divergentes sobre um mesmo tema nos dois campos. De que texto fictício estamos falando ? A que tipo de discurso histórico estamos nos referindo ? De que forma um texto como Viva o povo brasileiro reelabora o entrecruzamento entre história, memória e ficção ? Quais são as modalidades de representação da história e de atualização da memória coletiva nesse romance ? Eis as questões que nos ocuparão neste ensaio.

A crítica tem chamado a atenção para a releitura do processo de formação política e sócio-cultural do Brasil realizada por João Ubaldo Ribeiro em Viva o povo brasileiro, releitura esta que desmascara a construção de um determinado tipo de discurso histórico exclusivo e excludente4. Desde a epígrafe o romance anuncia o seu questionamento sobre a objetividade do fato histórico : « não existem fatos, só histórias ». A versão oficial da história, no romance, é apenas uma versão autoritária e autorizada dos fatos, contrastando com a experiência daqueles que vivem, sofrem e fazem a história, mas que não têm o poder de escrevê-la.

A crítica à noção de fato ou de documento históricos, enquanto dados objetivos e inocentes, não é exclusiva da reelaboração literária, ela tem sido feita pelos próprios historiadores. Jacques Le Goff, por exemplo, reconhece que o fato histórico é objeto de uma construção do historiador, que embora deva sempre buscar a imparcialidade, não pode escapar totalmente à sua subjetividade. Isso porém não significa que Le Goff abandone a noção de verdade histórica nem o objetivo da história enquanto ciência capaz de desmascarar as mistificações. Embora reconheça o caráter de construção narrativa da história, Jacques Le Goff recusa-se a reduzi-la à narrativa : « Mais cette reconnaisance d’une indispensable rhétorique de l’histoire ne doit pas conduire à la négation du caractère scientifique de l’histoire »5, acrescentando que o historiador não tem a mesma liberdade que o romancista. Desmistificar, descolonizar, democratizar a história « fazer o inventário dos arquivos do silêncio »6 são objetivos reivindicados por Le Goff. Nessa perspectiva, constatamos que o procedimento de denúncia das falácias da história, adotado pelo escritor João Ubaldo, está muito mais próximo dos objetivos que a história como ciência se impõe do que a epígrafe do romance nos levaria a supor. A história assim concebida e o projeto literário de João Ubaldo, cada um deles resguardando as suas singularidades discursivas, contrapõem-se à unicidade do discurso oficial construído sobre o fato.

Torna-se portanto problemático realizar uma leitura de Viva o povo brasileiro como se o romance fizesse o processo da história de uma maneira geral, inclusive porque essa leitura entraria em contradição com o caráter fortemente utópico do livro, acentuado pela personagem emblemática de Maria da Fé, pela evolução ideológica de Patrício Macário, ou pela entrada em cena de uma entidade, a « Irmandade do Povo Brasileiro », que simboliza a luta de resistência travada pelo povo, verdadeiro herói do romance. O que é ressaltado é a crítica ao uso da história, ao uso privativo que dela se faz, em função de interesses de grupos, colocando a nu a maneira como o Estado e as classes dominantes apropriam-se dos fatos para legitimarem-se no poder. Esta história comprometida com o processo de legitimação de uma nação fundamentada nos interesses da classe mais abastada - a história oficial – é que vai ser alvo da desconstrução do escritor.

O romance toma intencionalmente o referencial histórico da construção da nação brasileira, das origens aos finais dos anos 70 do século XX. Privilegia, no entanto, a inscrição da ação no século XIX, século marcado pela afirmação de um sentimento nacional que alimenta as lutas internas e externas de constituição da nação brasileira. Esse artifício permite que o escritor realize uma análise minuciosa da formação do sentimento nacional, detendo-se nas suas formas de manifestação no seio das elites e do povo. Inscrevendo a ação num contexto de crise, João Ubaldo cria condições para o embate ideológico que será travado dentro de uma perspectiva da luta de classes, num cruzamento das ideologias e dos discursos das elites e do povo. À exceção do segundo capítulo que localiza a ação no século XVII e dos dois últimos que contemplam os dois períodos de ditadura do século XX, todos os outros dezessete capítulos, de um total de vinte, situam a ação no século XIX: as lutas pela independência, o Império, a abolição da escravatura, a República, a guerra do Paraguai, a guerra dos Farrapos, a campanha contra Canudos, todos esses fatos são revistos a partir de um confronto entre o discurso da historiografia tradicional e a versão popular, fundamentada na experiência de vida das personagens.

Discordamos da idéia de que existiria uma « desproporção qualitativa e quantitativa do tratamento do século XX em relação aos segmentos que tratam da colônia e do império »7. Na verdade, se desproporção quantitativa existe, ela é apenas aparente. Tanto o capítulo segundo, que discute a violência do processo de aculturação a partir de um questionamento da moral jesuítica da catequese, quanto os dois últimos capítulos que se estruturam em torno da ditadura de Vargas e da ditadura militar completam a representação de uma cronologia histórica como um todo que manifesta, tanto no passado quanto no presente, a permanência de uma estrutura social fundamentada na exploração e na exclusão.  Revisitar o passado é uma forma de reintegrá-lo no momento atual, possibilitando dessa maneira o reexame do presente. Uma das leituras possíveis do livro é a do questionamento da ordem autoritária do regime militar que está vivendo seus últimos anos no momento em que João Ubaldo o está escrevendo. Mais uma mudança radical se anuncia no horizonte da história do país e talvez o receio de que esta mudança, mais uma vez, em nada altere a situação de opressão em que se encontra o povo brasileiro, tenha motivado essa narrativa. Se não temos certeza da motivação que está na origem do romance, pelo menos o receio, a que nos referimos, de que o povo seja novamente excluído como sujeito do processo histórico, está inscrito no texto.

Os elementos mais evidentes que possibilitam a leitura do presente sobre dados recriados do passado dizem respeito à reflexão sobre o papel do exército ao longo da história, através principalmente da figuração de uma das personagens principais, o militar de carreira Patrício Macário : a campanha contra o grupo de Maria da Fé, a participação na guerra do Paraguai, suas reflexões sobre a campanha do exército contra Canudos são experiências que interligam o destino individual da personagem com o destino histórico da nação, revelando os conteúdos sociais, históricos e ideológicos da formação do exército brasileiro ainda presentes na atualidade. Outro dado que estabelece uma ligação mais imediata com a realidade dos anos da ditadura é a luta armada travada pela guerrilheira negra Maria da Fé. Esses elementos, embora inseridos no século XIX, projetam no presente as questões centrais do período da ditadura : o poder militar, sua ideologia e as formas de resistência a esse poder. Além da componente militar, a construção de outros personagens que descendem da linhagem de Amleto Ferreira, representante da elite brasileira, coloca em cena as diversas facetas do poder e permite passar em revista o papel do clero, dos intelectuais, dos representantes do poder econômico, projetando esses dados na atualidade. Na verdade o escritor se defronta com o questionamento da origem dos problemas que se perpetuam ao longo do processo de formação e de afirmação da nação brasileira : o fato do modelo identitário das elites brasileiras continuar sendo o do branco colonizador. Este é o eixo que estrutura de maneira unitária a aparente desordem de um texto, que nos seus avanços e recuos no tempo, recusa a ordenação linear das sequências narrativas.

Portanto, se apenas dois capítulos retomam claramente o referencial histórico do século XX, a representação do processo de formação política e sócio-cultural brasileiro permite a reflexão sobre questões cruciais do Brasil moderno, revelando uma percepção da história enquanto um processo em que passado, presente e futuro encontram-se irremediavelmente imbricados8. Na narrativa de João Ubaldo reencontramos componentes que condensam simbolicamente esse imbricamento temporal : a canastra da « Irmandade do Povo Brasileiro » que contém os segredos do passado e do futuro e funciona no presente das personagens como um elo identitário ; e a « alminha brasileira », construção simbólica de uma genealogia que corrige o percurso identitário a partir do ponto de vista plural do imaginário popular. Esses elementos que significativamente aparecem juntos na cena apocalíptica final do romance, possibilitam que a narrativa articule a sua dimensão de temporalidade com a irrupção do maravilhoso, alargando as fronteiras da realidade.

Ao privilegiar o referencial histórico do século XIX, retomando as datas significativas para a cronologia da historiografia, Ubaldo as reinterpreta através do conflito entre o dominador e o dominado, figurando a participação do povo no destino da nação, sem perder a perspectiva da atualidade. Para dar conta desse conflito o narrador assume uma multiplicidade de vozes, e de pontos de vista, joga com os diferentes dialetos sociais, registros diversos de níveis de linguagem, de maneira que cada personagem, a partir da sua fala, está perfeitamente definida no que diz respeito aos referentes culturais do seu grupo social9. O antagonismo de classes expressa-se através da linguagem, nos diferentes dialetos representados, fazendo reviver o sistema de noções e valores do grupo : « Se souvenir d’un groupe, c’est bien se mettre à la place du groupe en parlant son langage »10. O romance recria a fissura social que se deixa ler na adoção de um modelo de linguagem que reproduz a língua do colonizador, na eleição do alfabetismo como critério de superioridade e na marginalização de uma forma de expressão vinculada ao imaginário popular.

No confronto de vozes duas estratégias básicas são adotadas, quando se trata de demolir o discurso mistificador ou despótico das elites. A primeira diz respeito à paródia e ao escárnio que marcam a distância do narrador em relação à ideologia veiculada por esses discursos. A cena de abertura do romance, situada no ano da independência do Brasil, inaugura esse processo de desconstrução que será uma constante na narrativa. A radicalidade do discurso paródico ridiculariza o mito do herói da independência tal qual ele nos é apresentado nos manuais escolares :

O povo brasileiro se levantava contra os portugueses e discursos caudalosos ribombavam pelas paredes das igrejas, boticas e salões onde os conspiradores profetizavam a glória da América Austral, fulcro de esplendor, fortuna e abundância. Em toda a parte sagravam-se novos heróis, um a cada dia a cada povoado, às vezes dois ou três, às vezes dúzias, com as notícias de bravuras voando tão rápido quanto as andorinhas que passam o verão na ilha11.

Mas também é possível que o narrador ceda a palavra à personagem acentuando o caráter dramático da cena que coloca face à face os representantes de classes ou de interesses antagônicos. Lembremo-nos do primeiro diálogo entre Macário e Dafé (capítulo 12, p. 401-403), ou da discussão entre as diferentes concepções do papel do exército entre Macário e Vieira (capítulo 14, p. 461-464), ou ainda da longa discussão que um componente do grupo de Maria Dafé e ela própria travam contra um oficial do exército durante a campanha de Canudos (capítulo 17, p. 561-566), entre vários outros que poderiam ser citados. Nessas cenas não há lugar para a paródia, dramatiza-se o embate ideológico, e a fala das personagens que defendem a perspectiva das classes populares adquire um caráter didático e exemplar.

Um mesmo tema pode ser submetido aos dois tratamentos, o da paródia e o do discurso exemplar. É o que acontece com o motivo da desconstrução do herói. O tratamento paródico da cena de abertura contrasta com a preleção de Zé Popó sobre o tema, enfrentando seu pai como interlocutor. Aqui a dramatização é intermediada pelo narrador que recorrendo ao estilo indireto e indireto livre vai construindo o debate. De volta da guerra do Paraguai Zé Popó é recebido como um herói na ilha de Itaparica. O seu discurso na Câmara Municipal corrige a versão mistificadora e reconstitui a realidade dos fatos :

João Popó que precisou ser contido para não interromper o filho, não esperou que houvesse reação ao que tinha sido falado e imediatamente perguntou sobre qual era o sentimento que dominava o soldado na hora de combater pela Pátria, ao que Zé Popó respondeu : medo. Mesmo depois de muitas horas de combate, mesmo depois de anos de guerra o que se sentia era medo todas as vezes12.

Não falava isto por modéstia, que nem sequer considerava uma virtude respeitável, mas por honestidade e porque queria que vissem que não existem homens especiais e que o herói pode ser qualquer um, a depender de onde esteja, do que faça e de como o que faz é interpretado pelos outros13.

Ambos os recursos são utilizados com o mesmo fim de combater um tipo de concepção da história baseada em mitos individuais. São estilos diversos e extremos, que fazem parte do arcabouço barroco de uma narrativa que explora as imagens antitéticas a todos os níveis. Se observarmos a organização interna dos capítulos nos damos conta que em geral ela obedece à finalidade de contrastar os diferentes pontos de vista defendidos pelos opressores e pelos oprimidos, apresentando alternadamente a versão dos vencidos e dos vencedores. Alternância de discursos que também pode simultaneamente representar uma alternância de épocas e espaços diversos, (como no capítulo XV, em que as três partes se situam na Vila de Itaparica, na Capoeira do Tuntum, e em Lisboa – única referência a um espaço geográfico estrangeiro), o espaço conotando a separação e as divergências identitárias entre os grupos sociais que estão em cena. Em Viva o povo brasileiro, o estrangeiro, o outro , encontra-se no interior dessa sociedade ; as elites nacionais passam a ocupar o lugar do colonizador.

Essa forma de representar a história da formação social do país coincide com a análise que a filósofa brasileira, Marilena Chauí, faz da constituição da sociedade capitalista. A retomada das idéias defendidas pela filósofa, ajudará a compreender a discussão que João Ubaldo estabelece em Viva o povo brasileiro. Chauí salienta o fato de que a constituição dessa sociedade resulta de um movimento de divisão interna em classes que a impossibilita de reconhecer-se como dotada de uma identidade:

A história é o enigma da ausência da identidade e da presença de uma divisão que foi produzida pela própria sociedade no momento em que ela se produzia como sociedade. A história da sociedade capitalista – pois é dela que se trata – é a história da produção da separação. […] A sociedade não pode se ver em si mesma como dotada de identidade, porque o que ela produz é o que a reproduz, é a divisão interna em classes, e ela se identifica ou com uma das classes ou com outra, mas com as duas ela não pode se identificar. Ora, para que obtivesse a identidade social seria preciso que se identificasse com ambas. Por isso irá promover uma imagem do Estado que se encarrega de aparecer como pólo de identificação social14.

É esse conflito interno entre dominadores e dominados que João Ubaldo vai realçar na sua releitura do processo de formação da nação brasileira. Do período da colonização à ditadura militar, a narração expõe a imagem de uma nação dilacerada pelo conflito. Não somente em Viva o povo brasileiro como também em outros textos, a exemplo do volume de contos Já podeis da pátria filhos e outras histórias (1991)15, reencontramos, como princípio estruturador, a projeção da visão de uma sociedade dividida por interesses de classes antagônicos, o que impede a construção de uma imagem identitária integradora da nação :

- Isso é a única coisa que faz sentido, é ver a nós mesmos como devemos nos ver e não como vocês querem que nos vejamos. E ver vocês como devemos ver e não como vocês querem que os vejamos. A História de vocês sempre foi de guerra contra o próprio povo de sua nação e aqui mesmo estão agora comandados por um que se celebrizou por mandar fuzilar brasileiros e por ser um assassino. E agora vêm falar de sua República ? Por que não nos falam de comida de terra, de liberdade ? Por que, enquanto hipocritamente libertam os negros, porque não mais precisam deles, criam novos escravos, ajudam a transformar seu país na terra de um povo humilhado e sem voz ? Sua República é um novo embuste, dos muitos que nos perpetraram e perpetrarão, pois não tenho ilusões sobre quem terminará vencendo esta guerra civil de Canudos16.

A ficção denuncia a relação entre a história escrita e o despotismo do poder. Desvendando o caráter normativo que o pensamento das elites assume, ao se apropriar das representações coletivas para elaborar uma síntese simbólica, o romance denuncia o processo de privatização da história, que na citação acima vem sublinhado pela utilização do possessivo, e de sua subsequente reutilização como elemento simbólico aglutinador : seleção e exclusão seguidas de generalização, assim se ordena um processo que vai impor à comunidade uma verdade que não passa da versão interessada de um grupo.

No vazio de uma história fictícia que alimenta os relatos heróicos dos vencedores, João Ubaldo opera uma ficcionalização da história que desloca o ponto de vista dominante e abre espaço para a pluralidade da memória coletiva. Se é verdade, como observa Lúcia Helena, que « a obra focaliza a História como embate contínuo de uma argumentação discursiva em que vencedores e vencidos tentam inscrever o texto de suas versões »17, é também verdadeiro o fato de que ela não permanece neutra em relação a essa discussão.

Assim, o que a ficção propõe é uma reposição dos fatos : confrontando as versões oficial e popular, a ficção imprime autenticidade à última e desmoraliza a primeira. É o caso exemplar da história do heroísmo de Perilo Ambrósio desautorizada pelo narrador e pela versão do negro Feliciano. A solidariedade entre o discurso do narrador e o das personagens populares é um recurso utilizado para colocar em evidência a distância que existe entre a imagem que as elites forjam para elas próprias e a sua verdadeira essência, o fosso existente entre o parecer - o que elas dizem ou aparentam ser - e o que elas são na realidade. Enfim, é o próprio discurso da ficção que surge como lugar privilegiado da verdade histórica. É ele que vai autenticar os fatos e os relatos populares sobre os mesmos.

Situando-se no pólo oposto do discurso da história oficial, a ficção contrapõe à unicidade do discurso construído sobre o fato, as múltiplas perspectivas e vozes que resgatam do silêncio os elementos que foram condenados a calar-se e relegados ao esquecimento. Contra a historiografia escrita pelas elites surge uma história viva, que reintegra a memória popular, buscando reativar a expressão de uma memória coletiva que não é unívoca e sim plural.

O romance é um libelo contra a historiografia tradicional e sua cumplicidade com o poder ; posiciona-se contra uma história que silencia, através de uma escrita unificada, o movimento vivo e plural da memória coletiva ; bate-se contra uma história que aprisiona, ao impor o pensamento de um grupo como o pensamento da sociedade como um todo. Ao lado da história escrita, a narrativa integra as configurações memoriais características das camadas populares, abrindo espaço para as manifestações culturais que se mantêm pela tradição oral18.

Teatro dessa dramatização entre história e memória, o romance de João Ubaldo busca corrigir as representações oficiais da história, reintegrando os elementos da memória coletiva. O « viva » do título do livro tanto pode ser lido como uma exclamação de aplauso que será retomada pelos discursos nacionalistas e revolucionários que a narrativa integra, em situações e sentidos diversos, como também enuncia os sentidos expressos pelo verbo viver, « existir », « perdurar », « passar à posteridade » : viva o povo brasileiro. O título guarda a ambiguidade dos discursos sobre o povo brasileiro que a narrativa revisitará. O ato de narrar constitui-se assim numa busca do sentido da nação, problemática que atravessa toda a obra de João Ubaldo Ribeiro, desde o seu primeiro romance, Setembro não tem sentido, originalmente intitulado A Semana da pátria19. Ao traduzir Viva o povo brasileiro para o inglês, João Ubaldo preteriu uma solução de tradução literal por um título que denota a vitalidade da memória como garantia do processo de transmissão de saberes de uma comunidade : An invincible memory20. Este título acentua a força da reprodução do imaginário popular através do tempo, e alude mais claramente à noção de conflito, a partir da qual o romance se constrói.

O romance busca reviver os aspectos mais diversos do imaginário popular, livre dos preconceitos que o silenciam. Viva o povo brasileiro vai eleger como forma privilegiada de caracterização do imaginário popular brasileiro uma dominante étnica de origem africana, recriando manifestações próprias das sociedades primitivas e sem escrita : os mitos de origem, as genealogias, as práticas religiosas, os rituais de magia, as lendas, os saberes considerados como segredos, todos esses componentes estão presentes no romance. Daí a importância de personagens como Dadinha (capítulo 3), velha matriarca cuja autoridade emana da sua longevidade e experiência, representante da sabedoria popular, guardiã da memória e das tradições de seu povo. Esta velha contadora de histórias permite fazer a ligação entre o presente e o passado do grupo, mantendo a sua coesão. A fala de Dadinha é marcada pela modalidade do saber. Mas, ao contrário da retórica vazia e grandiloquente das elites, a sabedoria popular se manifesta através de uma linguagem lúdica que confere ao discurso de Dadinha um caráter infantil, evocando uma pureza simbólica. É o seu discurso que explica o mito da origem em que todos se reconhecem e que possibilita a preservação da identidade do grupo. A memória cultural é a herança preciosa que Dadinha lega ao seu povo :

« Compreenderam então que Dadinha ia mesmo morrer e se ajeitaram para aprender tudo o que pudessem e não envergonhá-la na hora da partida […] »21

A personagem de Dadinha, evoca uma das possibilidades de resistência à cultura hegemônica, aquela que se organiza em torno da manutenção das crenças religiosas e dos valores culturais. Dadinha inaugura uma linhagem de mulheres que será perpetuada nas figuras das personagens Rufina e Rita Popó, feiticeiras, sacerdotisas, mães-de-santo, mulheres negras, portadoras de um duplo estigma, o do sexo e o da etnia, mas que assumem um papel de liderança na sua comunidade. Assim, o romance projeta no tempo a « invencível memória » popular, transmitida pelos ritos religiosos, ou por relatos que revelam um modo particular de recriar a realidade, incorporando a fantasia e o maravilhoso - como as histórias do cego Faustino - ou ainda por relatos fundamentados na experiência de vida das personagens. Todos esses relatos mantêm viva a herança cultural de uma comunidade.

Outra forma de resistência ao poder hegemônico é a da luta armada em prol da liberdade, encarnada pela « Irmandade do Povo Brasileiro » e por Maria da Fé. Aqui também temos a idéia de continuidade e de persistência da luta, realçadas pela transformação da « Irmandade » e de Maria da Fé em alegorias da liberdade. Todas essas formas se complementam e se interpenetram na batalha que enfrentam ao longo do tempo para não serem eliminadas. Há ainda a resistência pela astúcia, pela dissimulação, pela esperteza, representada pela personagem do negro Leléu :

Esta terra é dos donos, dos senhores, dos ricos, dos poderosos, e o que a gente tem de fazer é se dar bem com eles, é tirar o proveito que puder, é trabalhar e ser sabido, é compreender que certas coisas que não parecem trabalho são trabalho, essa é que é a vida do pobre, minha filha, não te iluda. E, com sorte e muito trabalho, a pessoa sobe na vida, melhora um pouco de situação, mas povo é povo, senhor é senhor ! Senhor é povo ? Vai perguntar a um se ele é povo ! Se fosse povo, não era senhor22.

A personagem do negro Leléu tem plena consciência das leis que regem uma sociedade fortemente estratificada. Na verdade ele descreve essa sociedade segundo um modelo feudal, uma sociedade de castas, imutável, que não oferece nenhuma possibilidade de ascensão social. Modelo este que ele considera como fazendo parte da ordem natural das coisas. Daí resulta o seu comportamento passivo, a sua descrença na possibilidade de qualquer mudança, em oposição à proposta revolucionária de Maria da Fé. Mas de acordo com sua visão, o seu comportamento é também uma forma de resistir, de sobreviver e de se afirmar, mesmo que seja dentro dos limites impostos pela ordem social.

Dessa forma, o romance dá lugar a uma representação variada dos pontos de vista das classes populares. Este é um dos aspectos da composição do texto que lhe confere autenticidade, pois o autor consegue recriar a diversidade de perspectivas que caracterizam a vivência da história pelas classes populares sem correr o risco, assinalado por Lukacs, de substituí-la pela concepção que o próprio escritor tem dos problemas da vida popular. Analisando o modo de figuração do romance histórico moderno, Georges Lukacs identifica dois grandes perigos que comprometem a sua composição : o primeiro diz respeito à ausência de ligação entre o destino pessoal e o destino socio-histórico das personagens ; o segundo concerne a tendência à intelectualização da experiência histórica, que corresponderia à figuração de destinos populares, do ponto de vista do autor e não do povo23. Viva o povo brasileiro tem o mérito de evitar esses dois perigos e ainda um terceiro, ao qual nosso filósofo não consegue se furtar, o que diz respeito a uma concepção realista das relações entre história e literatura, em que esta última fica reduzida a uma forma de espelho da « vida real do povo » inserido num período histórico concreto.

Viva o povo brasileiro extrapola os limites da representação realista, através de uma escritura inventiva que vai além da expressão de um sentido pré-existente. Ao proceder ao questionamento da história factual e à denúncia da ficcionalização manipulatória do fato, através da subversão paródica da historiografia oficial, o texto proporciona simultaneamente a integração do imaginário popular, rico e plural, como ponto de partida para a atualização da memória coletiva. Para além do diálogo com as fontes populares, Viva o povo brasileiro tem o mérito de instaurar um intenso diálogo intertextual com a tradição literária brasileira (mas não exclusivamente) apontando, através deste diálogo, o seu lugar nessa tradição24. O vigor da obra de João Ubaldo, escritor que reúne as qualidades de erudito e de grande contador de estórias, talvez possa ser explicado pela consciência que esta obra manifesta de ser um texto sobre textos. E se ao final do nosso percurso de leitura, a obra não nos parece mais real do que o real, pelo menos ela nos fala de um real mais plausível e reintegra a utopia como mola propulsora do processo de transformação histórico-social da sociedade :

Ninguém olhou para cima e assim ninguém viu, no meio do temporal, O Espírito do Homem, erradio mas cheio de utopia, vagando sobre as águas sem luz da grande baía25.

O final da narrativa remete curiosamente a essa outra história (estória ?) que nos contaram sobre um herói nacional sem nenhum caráter. Mas enquanto Macunaíma renuncia à aventura humana e se refugia no espaço mítico, no romance de João Ubaldo, as alminhas brasileiras estão « decididas a voltar para lutar ». Prova de que para o autor, assim como para Saramago, a « História […] ainda nem sequer começou »26.

 

Notas

1. José Saramago, « O tempo e a história », Jornal de Letras, quarta-feira, 27 de janeiro de 1999, p. 5.

2. ibid.

3. ibid.

4. Entre os vários ensaios escritos sobre o assunto, gostaria de destacar os que seguem que direta ou indiretamente embasam nossa leitura : Eneida Leal Cunha, « O imaginário brasileiro : entre a genealogia e a história », Estampas do imaginário : literatura, cultura, história e identidade (Tese de doutorado, Rio de Janeiro, PUC, 1993, cap. de tese, pp . 148-217 ; Lucia Helena, « A narrativa de fundação : Iracema, Macunaíma e Viva o povo brasileiro » , Letras 1, (Universidade Federal de Santa Maria-RS, 1991) 80-94 ; Zilá Bernd, « João Ubaldo Ribeiro, Vive le peuple brésilien », Littérature brésilienne et identité  nationale, Paris l'Harmattan, 1995, pp.88-113 ; Magdelaine Ribeiro, « Peuple et patrie dans Vive le peuple brésilien » , Quinzaine Littéraire 763, (Paris, 01-15/06/1999) 10-11.

5. Jacques Le Goff, Histoire et mémoire, Gallimard / Folio, 1988, p 203.

6. «[…] il faut, je crois, aller plus loin, questionner la documentation historique sur les lacunes, s'interroger sur les oublis, les trous, les blancs de l'histoire. Il faut faire l'inventaire des archives du silence. Et faire l'histoire à partir des documents et des absences de documents », ibid., p. 302.

7. Lucia Helena, op. cit. p. 92.

8. Saramago acentua este imbricamento temporal, através de perguntas que colocam em dúvida a validade do critério da cronologia, fundamento da história factual : « Em que data começou então a actualidade ? A que horas começou o presente ? Quando em que minuto do tempo futuro, o que hoje é tempo actual irá ser transformado em tempo passado ? » , José Saramago, op. cit.

9. No excelente e pioneiro ensaio da professora Rosa Virgínia Mattos e Silva, « Viva o povo brasileiro ! E a língua portuguesa ! », a autora usa a imagem de uma  « sinfonia linguística » para referir-se ao trabalho de recriação dos dialetos que João Ubaldo realiza nesse romance. Retomo a noção de dialeto explicitada neste artigo :  « (uso dialeto na acepção de qualquer variante social, local temporal, estilística de uma invariante « língua », que está na base de qualquer dos dialetos) ». In : Quinto Império. Revista de Cultura e Literaturas de Língua Portuguesa 1, ( Salvador-Bahia, 1986) 131-134.

10. Gérard Namer, Mémoire et société, Méridiens / Klincksieck, 1987, p.130.

11. João Ubaldo Ribeiro, Viva o povo brasileiro, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984, p. 10. (De agora em diante, usarei a sigla VPB para me referir à esta obra).

12. VPB, p. 481.

13. VPB, p. 482.

14. Marilena Chauí, Seminário na Funarte – 1980 – « Sobre o conceito de história e obra », texto datilografado.

15. Sobre esse assunto, ver nosso ensaio intitulado Stratégies narratives et identité(s) culturelle(s) dans les contes de João Ubaldo Ribeiro, in Cahier n° 7 du CREPAL - Centre de recherche sur les pays lusophones de la Sorbonne Nouvelle, sous la direction de Anne-Marie Quint, publicação prevista para junho de 2000.

16. VPB, p. 565.

17. Lucia Helena, op. cit., p. 91.

18. No seu ensaio « Da alegria e da angústia de diluir fronteiras : o romance histórico hoje na América Latina », Vera F. De Figueiredo faz uma caracterização do romance histórico de resistência que corresponde aos princípios básicos que conduzem a releitura do passado em Viva o povo brasileiro : « O romance histórico de resistência voltou-se contra a visão universalizante da história segundo um paradigma ocidental, denunciando as falácias desse discurso tido como científico, mas, ao tentar criar uma outra história, se contrapondo à versão oficial, revelou também de certa forma, uma crença na história, não mais como verdade única mas como conflito de versões no qual cabe afirmar a visão dos vencidos. Ao travar uma luta contra o esquecimento promovido pelo poder e fazer emergir os aspectos do passado que haviam sido silenciados pelas representações oficiais, é ainda a história que sai engrandecida – mas outra história, que uma vez resgatada, tem em si um potencial utópico. » In : 5° Congresso da Abralic – ANAIS v.1 « Cânones e contextos » - UFRJ, 1996, p. 479-486.

19. Depoimento do jornalista e escritor baiano Guido Guerra sobre a obra de João Ubaldo Ribeiro : « A literatura esperaria o ano de 1967 para sua estréia com Setembro não tem sentido, originalmente A semana da pátria : a alteração do título correu por conta do editor José Álvaro, naturalmente com a anuência do autor. » A Tarde Cultural, Salvador, 30 de ourtubro de 1993, p. 3.

20. Sobre as questões relacionadas com a tradução do romance pelo autor para o inglês, sugiro a leitura do ensaio de Robert Meyers, « Translating history and self-translation : João Ubaldo Ribeiro's Viva o povo brasileiro », Brasil / Brazil 12 (PUCRS / Brown University, 1994) 29-38.

21. VPB , p. 72.

22. VPB, p. 373.

23. Ver Georges Lukacs, « Caractère populaire et esprit authentique de l'histoire », Le roman historique, Paris, Payot, 1965, p. 321-343.

24. O ensaio de Eneida Leal Cunha, aqui citado, chama a atenção para o caráter intertextual da obra de Ubaldo, sublinhando as principais fontes coloniais, românticas e modernas com as quais o texto dialoga.

25. VPB, p. 673.

26. José saramago, op. cit.